passos largos entre os polígonos da calçada, moedas no bolso tirando-lhe a atenção. pensamentos aos montes, nenhum concluído. não estava triste e nem feliz, não tinha concentração para tanto naquele dia. apenas andava e pensava em cenas e antes que esboçasse algum sentimento, uma nova cena, uma nova cena e uma nova cena. chamava aquilo de tranquilidade porque cansou da palavra apatia. e era assim ultimamente, sempre que a ausência de algo definido lhe assolava, se percebia tranquila. apenas um espaço para o vento passar com seu direito de ir e vir. e cenas, cenas lembradas, vividas e cenas inventadas. e de tão visceral que eram, perdia-se na dúvida entre o real e a ficção. mas tudo bobagem, daqui a pouco uma nova cena, uma nova cena e uma nova cena. na realidade, era tudo bobagem mesmo, não tinha mais forças de sentir maiores coisas por algo. sentia mesmo era o vento no seu rosto, sentia a tranquilidade dos últimos dias. nem sabia ao certo se aquilo que resolvera assim chamar condizia com o significado real, mas é que todo o resto lhe cansava, e cansada de ficar cansada, resolveu ser tranquila e desejar paz pra quem lhe cruzasse o caminho. e assim caminhava pela calçada ela e o vento, a passos largos e pensamentos curtos. fitou a frase rabiscada no tênis e sorriu.
com lágrimas, sorrisos e giz
faço um rascunho sem fim
calo e finjo que ouço
o esboço de mim.
crio, apago, esqueço
um nó, alguns laços
sigo setas, sigo passos
dou a volta e me refaço
um ciclo, um refrão
me perco e me acho
gritos, donde virão?
lágrimas, sorrisos e giz
um rascunho sem fim
o sentir de carne e osso
o esboço de mim.
agora eu vou contar a história do josé. o josé tem doze dentes na boca, um bicho-de-pé e um amor. três desses dentes doem e os outros são escuros. o bicho-de-pé incomoda o dia todo. o amor do zé (como todo bom josé ele também é assim chamado), fugiu com o dono da única venda da região. ele não reclama de dor de dente, nem de dor do pé, nem de dor do coração. o zé sorri. quando passa todos o cumprimentam. batarde cumpade zé!, já tá de pé, homi! ele ficou conhecido por ali depois que seu amor.. você sabe. o josé é aquele legítimo interiorano, homem bom e simples de coração. na vizinhança moram os interioramos fajutos, aqueles metidos à muita merda, aqueles que respondem até pra quem não pergunta: eu sou é da cidade! eu nem queria tocar no assunto, mas o amor do zé era assim também. quando o zé passa todos o cumprimentam, mas cumprimentar não significa amizade. na verdade eles acham tão bobo aquele zé! mas não usam a palavra bobo, é outra bem ofensiva e bem regional que eu não me recordo agora. o zé vai trabalhar enquanto os outros conversam em português errado fazendo pose de coronel. todos infelizes, negando suas próprias vidas, escondendo as unhas sujas de barro. o zé mais na frente cortando carnaúba, suado e cansado. sorri e pensa alto: tão bobo que é aquele pessoal vivendo tudo errado! e foi exatamente essa a palavra que ele usou. o zé vem mensalmente à cidade nos presentear com frutas e cochilar na área daqui de casa depois de elogiar o feijão. ao fim do dia ele vai embora deixando bem claro que já está com saudade de sua terrinha. ele acena até dobrar a rua e a gente tem certeza que ele sorri.